Revista de Zona Proxima ISSN electrónico: 2145-9444
ISSN impreso:1657-2416
Nº 17 julio-diciembre de 2012
Fecha de recepción: 2 de octubre de 2011
Fecha de aceptación: 21 de abril de 2012

ARTÍCULOS CORTOS DE RESULTADOS PRELIMINARES DE INVESTIGACIÓN
SHORT ARTICLES OFPRELIMINARY RESEARCH REPORTS

Práticas de leitura e escrita de professoras em contextos de ensino semipresencial: novas maneiras de viver e estar na profissão docente

Reading and writing practices of teachers in educational contexts: new possibilities to live and be in teaching profession

Apoio: FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).

BELMIRA OLIVEIRA BUENO
Professora titular da faculdade de educação da Universidade de São Paulo.
bbueno@usp.br

ELIANA SCARAVELLI ARNOLDI
Mestranda da faculdade de educação da Universidade de São Paülo.
eliana.arnoldi@usp.br


RESUMO

Este artigo trata da formação de professoras de Ensino Fundamental I e suas relações com a leitura e a escrita. Tem como objetivo problematizar o uso das tecnologias da informação e comunicação (TIC) na formação docente, baseado nas teorias da história cultural (Chartier) e da sociologia da cultura (Bourdieu e Lahire). Por meio de observações diretas, entrevistas e análise documental, as pesquisas já realizadas examinam as formas de (re) apropriação das práticas de leitura e escrita que ocorrem no âmbito de um programa de licenciatura semipresencial desenvolvido no estado de São Paulo (Brasil). A investigação em curso busca compreender e indagar sobre as relações que as professoras estabelecem com tais práticas quando elas próprias são aprendizes, focalizando as estratégias que utilizam para lidar tanto com o suporte impresso quanto com o eletrônico, bem como seus caminhos de socialização escolar e profissional e o capital cultural adquirido.

Palabras clave: Formação de professores, TICs, ensino semipresencial, práticas de leitura, práticas de escrita, apropriações.


RESUMEN

Este artículo trata de la formación de maestras de primaria y sus relaciones con la lectura y la escritura. Tiene como objetivo problematizar el uso de las tecnologías de la información y comunicación (TIC) en la formación docente, basado en teorías de la historia cultural (Chartier, 2001) y de la sociología de la cultura (Bourdieu, 1996). Por medio de observaciones directas, entrevistas y análisis documental hechos por diversas investigadores del grupo, se buscó analizar las formas de (re)apropiación de las prácticas de lectura y escritura que ocurren en el ámbito de un programa de licenciatura semipresencial desarrollado en la provincia de São Paulo (Brasil, 1996). La investigación en curso busca comprender y indagar sobre las relaciones que las docentes establecen con tales prácticas cuando ellas mismas son aprendices, así como las estrategias que utilizan para manejar tanto el soporte impreso como el electrónico, teniendo en cuenta sus caminos de socialización (escolar y profesional) y el capital cultural adquirido.

Palabras clave: Formación de maestros, TIC, enseñanza semipresencial, prácticas de lectura, prácticas de escritura, apropiaciones


ABSTRACT

This article is about the training of elementary school's teachers and their relations with reading and writing. It has the aim of problematize the use of the information and communication technologies (IcT) in the field of teacher education, based in the theories of cultural history (chartier) and sociology of culture (Bourdieu and Lahire). Using observations, interviews and official document done by several investigations of the research group, it focuses on the process by which the teachers do (re)appropriation of the reading and writing in the context of a in-service program developed in the State of São Paulo (Brazil), trying to understand the relations that the teachers establish with such practices when they are learners. For that, it focuses and asks about the strategies they use to deal with the print and the electronic supports as well their educational and professional ways of socialization and the cultural capital acquired.

Keywords: Teacher education, ICT, distance/presencial learning, reading and writing practices, appropriation.


INTRODUÇÃO

Este trabalho trata da formação de professores e suas relações com a leitura e a escrita. Tem como objetivo problematizar o uso das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) na formação docente com base em estudos realizados no âmbito do Projeto Temático Programas Especiais de Formação de Professores, Educação a Distância e Escolarização: pesquisas sobre novos modelos de formação em serviço1, em curso na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

Leitura e escrita são aqui entendidas como práticas culturais que se diferenciam no tempo, (re) criadas dentro e fora da escola. Com o advento das TIC, essas práticas se diversificam com maior rapidez e trazem grandes desafios para os professores, sobretudo, ao provocar uma ruptura entre as antigas e as novas representações sobre a escola. Os estudos aqui referidos, com base em pressupostos da história cultural, buscam compreender as relações que as professoras estabelecem com a leitura e a escrita quando elas próprias são aprendizes em situação de formação continuada em serviço. Nessa direção, focalizam-se as estratégias que elas utilizam para lidar com o suporte impresso e o eletrônico, levando em conta seus percursos de socialização escolar e profissional, bem como o capital cultural adquirido.

Chartier (2001) e Roche (2001)2 mostram que as práticas de leitura e escrita variam não apenas no decorrer do tempo, mas, também, no interior dos grupos em uma mesma época. A ênfase dada por eles ao suporte material e à produção de sentido que se opera por meio dos protocolos de leitura tem nos levado a dar atenção, hoje, tanto aos textos impressos como aos eletrônicos, sobretudo no caso das leituras que são impostas aos professores. Para Chartier (2001, p.11), "a materialidade do suporte passa a ser inalienável do espírito das representações a que seus usos deram margem". Todavia, consideramos ser também necessário dar atenção para a opacidade de tais dispositivos a fim de melhor observar as diferentes competências que se processam nesses aprendizados particulares.

Os estudos levados a efeito no âmbito de nosso grupo de pesquisa buscam investigar as práticas de professoras no que tange às (re)apro-priações que elas fazem da leitura e da escrita em situações de formação em serviço, partindo da premissa de que um mesmo texto é lido e apropriado diferentemente por seus leitores. Admite-se que um processo similar ocorre com a escrita, dependendo do contexto, do suporte material e do capital cultural (Bourdieu, 1996) de seus aprendizes e praticantes. Supõe-se que hoje, devido ao largo uso da escrita digital e do não abandono da escrita manuscrita, essas apropriações se deem por meio de processos novos e não lineares, os quais ainda são pouco conhecidos.

Conhecer tais processos parece-nos de grande relevância pelas implicações que podem ter para a formação de professores e para as práticas de alfabetização no ensino fundamental. Mais ainda quando se considera que as professoras primárias usufruem de poucas oportunidades para praticar a leitura e a escrita, embora por força de seu ofício ensinem a ler e a escrever cotidianamente. No contexto do programa focalizado em nossas pesquisas observou-se que essa rotina entrou em ebulição, visto que as numerosas atividades propostas ao longo do curso acabaram por levar as professoras a desenvolver forçosamente novas interações com a leitura e a escrita (Bueno, 2007; Sarti e Bueno, 2006; Bueno, Souza e Bello, 2008; Bueno e Oliveira, 2009).

A escolha desse objeto decorre, ainda, do entendimento de que é nos primeiros anos da vida escolar que as crianças estabelecem relações cruciais com a leitura e a escrita, mediadas pelas professoras cujas práticas se mostram definidoras do gosto que então se desenvolve por essas atividades. Na experiência em análise, as docentes acabaram por faze r(re)apropriações diversas da leitura e da escrita ao terem vivenciado intensamente essas atividades, atuando em ambientes de ensino presencial e virtual. (Bueno, Souza e Bello, 2008).

Com base em tais estudos este trabalho busca apontar, de um lado, as tensões criadas por um ensino que, embora apoiado em modernas tecnologias, é proposto para professores de uma escola, que ainda se acha calcada em valores e representações fortemente estruturados pela cultura escolar forjada nos últimos cem anos; e, de outro, a potencialidade das dinâmicas que podem se instaurar com o uso dessas tecnologias, considerando a necessidade de se repensar as políticas de formação de professores.

Os estudos aqui referidos foram realizados por meio de abordagens etnográficas, envolvendo observações em campo, entrevistas, coleta de documentos oficiais e trabalhos elaborados pelas professoras. O referencial empírico foi o Programa de Educação - PEC - Formação Universitária, um programa de formação em serviço, de nível superior, realizado no estado de São Paulo (Brasil) na última década. Para esclarecer a natureza desse programa e a relevância do tema aqui focalizado, busca-se, a seguir, situá-lo no contexto das políticas educacionais no Brasil dos últimos anos.

UM NOVO MODELO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES

A formação de professores no Brasil sofreu grandes transformações nas duas últimas décadas, sobretudo, a partir da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil, 1996), quando se estabeleceu que a partir de 2007 "somente serão admitidos [na Educação Básica] professores habilitados em nível superior ou formados por treinamento em serviço" (art. 87). Em vista disso, novos modelos de formação docente emergem em todo o território nacional, com estímulo ao uso das novas tecnologias da informação e comunicação (TIC) e do ensino a distância (EAD). No plano teórico, novos quadros conceituais começaram a ser buscados para fazer frente a essas demandas e situações tão inusitadas quanto desafiadoras. A formação em serviço de professores, apontada como um dos principais eixos das reformas educacionais dos anos de 1990 em muitos países, também tem ocupado esse lugar no caso brasileiro.

No plano nacional, o Programa de Educação Continuada-Formação Universitária (que teve sua continuidade com o PEC - Municípios), constituiu-se em um exemplo das mudanças que se desenharam no país a partir desse período. Concebido como um programa especial, em virtude de seu caráter temporário, foi realizado graças à iniciativa da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo (primeira edição) e das Secretarias Municipais de Educação (segunda e terceira edições), contando com a parceria de três grandes universidades (USP, PUC-SP e UNESP), além de várias fundações de caráter privado. No total, diplomou cerca de 10 mil professores no período de 2001 a 2008.

Considerado um exemplo de ensino semipresencial, por ter combinado ensino presencial com procedimentos da EAD e uso das TIC, o programa estruturou-se a partir de uma carga horária de 26 horas semanais, dentre as quais 13 horas eram destinadas às mídias interativas (ou mídias integradas): videoconferências, teleconferências e trabalho monitorado (TM) online. Devido à multiplicidade de ferramentas utilizadas, fez-se necessário contar com diferentes grupos de agentes pedagógicos para viabilizar as atividades previstas pelo programa: tutores, assistentes, orientadores, videoconferencistas e teleconferencistas.

Iniciativas desse gênero surgiram em todas as regiões do país, evidenciando um quadro de novas configurações para o campo da formação de professores no Brasil. Tais experiências têm se configurado como respostas a duas ordens de pressão: de um lado, da nova legislação brasileira que tem pedido urgência na formação e na certificação dos professores do ensino primário; de outro, de órgãos externos como o Banco Mundial e a UNESCO, em virtude de suas ênfases sobre o uso das tecnologias na educação.

A formação de professores, processada segundo esses novos modelos, deve, por isso, ser entendida tanto no âmbito das relações com esses fatores de ordem mais abrangente (políticos e culturais, decorrentes das mudanças pelas quais vem passando a sociedade contemporânea) como das relações com fatores mais próximos relacionados aos contextos locais. Assim, ainda que as versões localmente produzidas apresentem formatos próprios e particularizados, elas expressam algo em comum ao colocarem em xeque tanto os modelos tradicionais de formação como os critérios de desempenho profissional e de eficácia das instituições formadoras.

Além disso, faz-se necessário compreender que essas mudanças se desenvolvem no plano das microrrelações sociais, onde se processa a cultura escolar (Julia, 2001). As tecnologias e os meios eletrônicos que dão vida a esse mundo vêm produzindo, como tantas vezes já se afirmou, mudanças profundas nas formas de comunicação, alterando os modos de viver e conceber o tempo, os espaços, os lugares e as distâncias, bem como as interações sociais e as próprias relações com o conhecimento. Podemos por isso perguntar: que efeitos essas mudanças provocam nos modos de ver e de sentir dos professores e das professoras? Como eles e elas se relacionam com as novas tecnologias? Como concebem a formação a distância? Como lidam com suas habilidades anteriores, adquiridas e construídas durante tantos anos de convivência com a escola?

Uma compreensão maior do impacto das novas tecnologias sobre a cultura escolar implica, portanto, em olhar não apenas para seus efeitos de conjunto, mas, também, para os espaços mais restritos e mais privados nos quais se inscreve a vida e o trabalho dos professores. Ou seja, no âmbito de seu cotidiano, quer este seja entendido por seu caráter sócio-político — uma construção social que se faz por meio de lutas e embates entre a vontade civil e a vontade estatal (Rockwell, 2010) — ou por seu caráter sociocultural - uma fabricação que permite ver também a escola como uma produção astuciosa, dispersa, silenciosa, que se manifesta nas muitas "maneiras de fazer", ou seja, nas práticas por meio das quais seus "usuários se apropriam do espaço organizado pelas técnicas da produção sócio-cultural" (De Certeau, 1994, p.41).

Quer em um sentido como em outro, trata-se de compreender de que modo os professores se defrontam com as atuais políticas de formação, especialmente as que fazem uso da EAD e das TIC. Não corresponderiam elas a um tipo de técnicas de produção cultural? Nesse caso, tratase de perguntar: de que modo os professores se apropriam dos objetos e valores que lhe são impostos e dados a consumir? Ou, dito de outra forma, como se traduzem suas muitas "maneiras de fazer", suas formas de submissão ou de rebeldia? Quais seriam, portanto, os indícios de que tais programas favorecem a instauração de processos de multiplicação de valores e culturas locais?

Questões e indagações dessa natureza orientaram as pesquisas referidas neste trabalho, as quais buscaram tomar a leitura e a escrita das professoras como objeto de estudo.

PRÁTICAS DE LEITURA

As práticas de leitura das professoras no contexto do PEC tomaram sentidos próprios a partir das apropriações que as professoras foram capazes de fazer dos textos acadêmicos que foram levadas a ler (Sarti e Bueno, 2006). Diferentemente do que se imaginava a observação direta de como as professoras lidavam com os textos e a leitura mostrou que elas não realizavam uma leitura homogênea e restrita do objeto escrito, mas um outro processo, equivalente ao de uma subversão da "ordem dos discursos" (Sarti, 2005).

Vale lembrar que as professoras que participaram do PEC realizavam, em sua maioria, uma jornada dupla de trabalho3. A frequência ao programa no período noturno representava, assim, uma espécie de terceiro turno. A maioria delas, sem quaisquer experiências anteriores com o uso de computadores, acabava caindo em situações de angústia que decorriam tanto dos desafios de lidar com as novas tecnologias como, também, das exigências do programa de ensino superior que estavam frequentando, diferente e distante de suas referências anteriores. Talvez por isso, e também pelo fato de reviverem ali a condição de alunas, mostraram reações e comportamentos que resultaram não raras vezes em subversão às orientações e normas estabelecidas.

No que se refere às práticas leitoras, foi possível observar um modo peculiar de as professoras interagirem com os textos acadêmicos de leitura obrigatória definidos pelo programa. Ao invés de explorarem tais textos em direção a uma compreensão de tipo inferencial e buscarem o sentido das afirmações, elas priorizavam o exame das percepções que compartilhavam sobre o ensino e a escola, ancorando-se, como já afirmara A-M. Chartier (1999), em saberes e interesses de ordem prática (Sarti, 2005). Durante as leituras, elas se valiam de certas "estratégias de oralidade letrada" (Kleiman, 2001, p.59), buscando traduzir com exemplos e contra-exemplos práticos o que os autores queriam dizer. Além disso, seguiam a discussão com o apoio de certas táticas de consumo (De Certeau, 1994), assumindo temporariamente o lugar dos autores, ao colocarem no lugar do mundo sugerido por eles suas experiências docentes. Com isso, subvertiam a "ordem dos discursos", como observado por Sarti (op. cit.). Esse modo de se relacionar com a leitura levava em conta, subjetivamente, o grau de interlocução das professoras com o cotidiano escolar que elas vivenciavam. Ou seja, agiam com base em seu valor de uso (Bourdieu, 1996) no que diz respeito ao atendimento das necessidades e resolução de problemas enfrentados por elas no exercício de seu ofício.

Práticas de Escrita

Além de terem sido submetidas a uma grande carga de leituras acadêmicas, as professoras também escreveram muito ao longo do curso, tanto no papel, como na situação da Escrita de Memórias, quanto no computador, no caso do Trabalho Monitorado Online4. Ao longo do curso, as professoras tiveram de escrever treze Memórias. Essa atividade, a despeito de restrições já feitas quanto ao modo de desenvolvê-las (Bueno, 2006), tiveram importância para as docentes ao permitir-lhes escrever e se manifestar a propósito de situações vividas durante a escolarização, com indícios de um processo de descoberta de si. As Memórias examinadas permitiram também observar surpresas, desafios e dificuldades enfrentados por muitas professoras no decorrer da vida escolar e profissional, assim como durante a frequência ao próprio programa. Muitas se reportaram ao estranhamento que sentiam no novo contexto, notadamente em relação ao uso do computador e da Internet, com os quais vieram depois a adquirir maior familiaridade.

Apesar dos benefícios dessa prática de escrita, é preciso ressaltar, no entanto, que a Escrita de Memórias foi conduzida de modo extremamente diretivo, transformando-a em um dispositivo de controle e de poder disciplinar, em contraposição ao que se admite ser seu principal potencial formador: o desenvolvimento de maior autonomia (Bueno, 2007). O fato, por exemplo, de as alunas não poderem optar pela elaboração de tais relatos e, ainda, a entrega da Escrita de Memórias ser contabilizada nas avaliações das professoras comprovam essa prática de controle. Além disso, as orientações fornecidas para a escrita dessa atividade eram demasiadamente impositivas, restringindo e limitando o processo de rememoração e a escolha do que se esperava viessem a relatar e comunicar.

Quanto às atividades de escrita no TM-online, no qual as professoras tinham que responder no computador questões referentes ao conteúdo do curso, os depoimentos dos assistentes (PA)5, responsáveis por corrigirem tais questionários, nos dizem muito sobre outros aspectos do habitus escritor das professoras. Os PA pontuaram que, embora estivessem lidando com professoras que contavam em sua maioria com muitos anos de carreira, a quantidade de erros de ortografia era muito grande. Isso trouxe sérias dificuldades para eles, que não sabiam exatamente como proceder ao apresentar as correções dos textos às autoras. No início, muitas ficaram indignadas e/ou magoadas, não aceitando ser corrigidas. Por isso, os assistentes se preocupavam em saber como as professoras se sentiriam se continuassem a ser corrigidas do mesmo modo que elas atuam em relação a seus alunos. Será que cairiam em uma crise de angústia por se verem mais uma vez sem reconhecimento, fragilizadas como profissionais pouco valorizados socialmente?

Ainda que a partir da perspectiva dos assistentes elas tenham melhorado muito no que diz respeito à prática da escrita ao longo do programa, não somente concernente à ortografia, mas também ao conteúdo abordado, sua coerência e coesão, eles puderam observar outras "táticas de consumo" utilizadas por elas, como, por exemplo, o plágio de sites da Internet e a cópia generalizada de respostas entre as alunas. Os assistentes relataram que, ao perceberem muitas semelhanças entre os trabalhos apresentados, devolviam as atividades às professoras com comentários que tinham por objetivo promover uma mudança em suas posturas. Para tanto, ressaltavam a importância de cada uma ter a sua própria opinião e, no caso de plágios da Internet, as devolutivas eram dadas no sentido de orientá-las a adotar os sistemas de referências textuais após consulta a suas fontes, recomendando a colocação de aspas no excerto retirado, a informação sobre o local de onde haviam retirado as informações etc. Em tais situações, os assistentes se mostravam muito cuidadosos para que as mestras não se sentissem depreciadas como profissionais.

O CONTATO COM AS NOVAS TECNOLOGIAS

A relação difícil das professoras com as tecnologias no contexto em estudo vai além do exemplo do plágio acima comentado. Muitas delas, sentindo-se pouco confortáveis com o uso do computador, se valeram de outras táticas para tentar dar conta das exigências do programa. Por exemplo, atividades que teriam que ser realizadas online dentro do espaço físico dos pólos acabavam tomando outros rumos em sua execução. Muitas professoras copiavam os enunciados em disquetes, imprimiam-nos em suas casas e redigiam as respostas à mão, em espaços e momentos diversos daqueles que tinham sido previstos inicialmente. Assim, o momento do TM-online era dedicado unicamente à mera digitação. Além disso, como muitos dos trabalhos do TM-online eram em grupo, normalmente, a professora que possuísse maior familiaridade com o computador se responsabilizava pela digitação e envio das respostas, assim como pelas pesquisas a serem feitas na Internet (Bueno e Oliveira, 2008). Desse modo, aquelas com maior dificuldade no manejo do computador e da Internet acabavam sendo as que também menos utilizavam esses recursos. Todavia, há que se ressaltar que cada professora, a seu tempo, estabeleceu uma relação de maior ou menor familiaridade com as mídias eletrônicas adotadas pelo programa, inclusive com as de vídeo e teleconferências.

LEITURAS, ESCRITAS, COMPUTADORES E A PRÁTICA PEDAGÓGICA DAS PROFESSORAS

O ritmo intenso de leituras e produções escritas imposto pelo PEC deixou evidente que, embora as professoras sejam alfabetizadoras e tenham por ofício o ensino da leitura e da escrita, muitas não se reconhecem como leitoras e escritoras. Nas escritas de suas memórias, muitas apontaram as difíceis relações com essas práticas e as péssimas recordações das leituras que lhes foram impostas pela escola, atribuindo a esse aspecto a falta de gosto que desenvolveram pela leitura. Ler significava apenas uma tarefa para passar nas provas, jamais um prazer. Em vista disso, entendemos que o PEC, ao promover um contato diário com tais práticas permitiu a muitas docentes uma (re)apropriação e uma nova significação das práticas de leitura e de escrita, como se pode ver nos excertos seguintes, de duas professoras:

O curso possibilitou um encontro com a velha arte de escrever. Não a escrita pedagógica, voltada para concepções e teorias, mas, sim, a pessoal. Resgatei minhas memórias do tempo da escola, como também meu lado poético que jazia adormecido. Através das vivências e provas, aumentei minha autoestima, pois percebi que ainda tenho o dom da escrita. (MR)

Hoje tenho o hábito de ler alguns livros para meus alunos em sala de aula, para que eles se espelhem e criem o gosto pela leitura e aqueles que ainda não se apropriaram da leitura tenham a oportunidade de saber o que está escrito dentro de um livro escolhido por ele próprio. (AP)

Quanto ao uso do computador, foi possível perceber que, embora o mesmo tenha passado a ocupar, para as mestras menos resistentes, um espaço maior em suas vidas, seu uso ainda era muito restrito a atividades específicas como, por exemplo, digitar trabalhos, enviar e-mails, fazer pesquisas na Internet, criar perfis em redes sociais. Não houve por parte delas o reconhecimento do computador como um novo suporte de leitura e escrita e, tampouco, a construção de um sentido educativo para o mesmo (Bueno, Souza e Bello, 2008).

à guisa de conclusão

Os vários aspectos relativos às práticas de leitura e escrita e ao uso de novos suportes tecnológicos na formação de professores apontados no presente texto foram colhidos e analisados quando o PEC ainda se encontrava em execução. Portanto, quando as professoras ainda estavam sob o efeito da experiência imediata do programa. A experiência afetava sobremaneira suas vidas de maneiras diversas. De um lado, pelo entusiasmo de verem realizado o desejo de obter um diploma de nível superior atestado por uma universidade pública; de outro, pelo estresse do trabalho em jornada tripla, privadas por muito tempo da convivência familiar. Esses impactos e a relação contingente com a experiência em sala de aula, certamente, não nos permitiram dimensionar mais amplamente esses aprendizados e apropriações. Por isso, os dados analisados sugerem indagações diversas.

Em que medida têm havido transformações mais efetivas nas práticas de leitura e escrita das professoras, em seus habitus leitores e escritores, tomando-se por referência suas práticas pedagógicas em sala de aula hoje? De que modo os aparatos eletrônicos e as TIC entraram em cena na vida pessoal e profissional dessas professoras? Qual o papel que a escola, o sistema escolar e as políticas educacionais jogam nesse processo, seja na transformação ou no desenraizamento da leitura e da escrita? De que modo a socialização familiar e escolar dessas professoras teria contribuído para a continuidade ou descontinuidade dessas transformações? Quais seriam as potencialidades para a socialização profissional de um programa como o PEC Formação Universitária, que investiu em práticas diárias e diversificadas de leitura e escrita?

Esses questionamentos surgem diante da tentativa de problematizar o potencial transformador de um programa de formação de professores que se ergueu como uma forte experiência de socialização profissional. Se tais transformações nos habitus das docentes ocorreram, trata-se de saber quais são os prolongamentos dessas transformações para as práticas de leitura e escrita que elas desenvolvem em sala de aula com seus alunos. Afinal, como um professor não-leitor poderia formar alunos leitores e escritores?

É no intuito de encontrar respostas para as questões acima elencadas, sobretudo, sobre a possibilidade de os/as docentes recriarem suas práticas de leitura e de escrita, que novas pesquisas vêm se desenvolvendo no âmbito de nosso grupo de estudos. O que se intenta é analisar e detalhar os impactos das políticas que têm sido delineadas para a formação de professores no Brasil hoje e seus efeitos para o trabalho em sala de aula. Espera-se, desse modo, poder refletir sobre as potencialidades e limites desse modelo de formação docente disseminado largamente no Brasil após a LDB de 1996.


Notas

1 Projeto Temático fapesp (Proc. 2008/54746-5), coordenação de Belmira Oliveira Bueno.

2 Esses dois trabalhos fazem parte da coletânea Práticas de leitura, organizada por Chartier (2001).

3 No Brasil, os baixos salários docentes permitem às professoras trabalhar em dois turnos, em duas escolas diferentes.

4 O Trabalho Monitorado online - TM-online consistia em um momento no qual as professoras realizavam atividades em uma plataforma virtual. Essas atividades eram, no geral, questionários e pequenas reflexões acerca dos temas debatidos no curso, os quais eram corrigidos posteriormente por um grupo de docentes do PEC denominados professores-assistentes (PA).

5 Os depoimentos dos assistentes foram colhidos durante a pesquisa de Iniciação Científica "A divisão do trabalho docente no PEC - Formação Universitária Municípios: o papel dos professores-assistentes", realizada por Eliana Arnoldi (2007- 2010) sob orientação de Belmira O. Bueno.


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Sarti, F. M. (2005) Leitura profissional docente em tempos de universitarização do magistério das séries iniciais, 2005. [Tese doutorado]. Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo.

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